sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O ser da vida


O ser da vida é tal qual o do vinho,
do mel, da fruta acre, da mulher:
metade doce, metade azevinho,
na mesma flor o bem e o malmequer.

Quer seja primavera, quer inverno,
vai caminhando duplo o ser eterno,
aqui é o lugar dessa briga santa.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

"It's was not death, for y stood up"

Emily Dickinson

Era o amor, mas não morri.
Frigiu-me bem o santo óleo;
se nesse amor saí ferido,
herdei também um rico espólio.

Morri e não morri de amor...

Era amor, mas não era a morte.

Internet


O Computador
não mensura a dor,
não me pluga plus:
I erased the brother.

I'm an alive electron,
preso nessa rede.

Than inside net
of my Pentium, rogo,
náufrago entre esferas,
as Robinson Crusoé;
e rogo silente
num bote de bits,
sem um lar ou link.

WORLD
WIDE
WORLD.

Homeless

Vi, num filme, humanos a flambar.

No fogo dos jornais, as mãos a arder;

pobres ratos no tempo, sem um bar,

lambendo a vidraça, e a gemer.


Na pira dessas vidas corta o gelo,

no corpo dessas almas um ferrolho,

não há sobra de pão ou qualquer zelo;

há neve a cair, um largo antolho.


A cidade degusta a ceia santa,

é servido o repasto com uísque,

harpas e violino, corais encantam.


Pobres figuras ocas e de toucas,

renas, rendas de estrelas, luz e almíscar:

Nova Iorque no céu, no chão, é louca...

Girassóis de Batatais


Os girassóis espalhados no campo,

dobrados por um torcicolo, dormem.
Vão sonhando o sol fazer as manhãs,
vão ofertando o mel e os grãos enormes.

É no olhar dos girassóis que se vê

o feitiço do sol, também da estrela.
É com essa paixão que esses grãos têm
pelo dia que pela noite vão tê-la.

Suas sementes são das aves verdes,

que se nutrem nos seus cofres de ouro,
que surgem súbitas no céu sem rede,
arremessando ao ar as vozes roucas..

Mas não são esses os girassóis da Rússia,

tampouco os holandeses que a Van Gogh
enlouqueceu; e o pintor, tão lúcido,
botou-os na lapela, a mente grogue.

Há nesse vale girassol poeta...

Olho no olho do nó dessa vida,
urdindo versos da morte secreta,
no céu contando os sóis da despedida.

À noite os girassóis giram à lua,
abrem doces casulos de sereno
e amam ver a lua só e nua,
a modular no banho a voz amena

Novo bairro

O novo bairro sem gente
é estéril argamassa.
Sem telhado, os indigentes
dormem na lua que passa.

Portas não há para as almas,
que ainda esperam igreja:
Deus, para o bairro de cal,
sua vinda ainda enseja.

(Ausência prepara ausência).

Esse bairro inumano,
se não tem os moradores,
mora lá faz mais de ano
Dona Senhora das Dores.

(Que fez lá uma vivenda).

Em breve logo se mudam
os seus tão queridos filhos.

Das mudanças

Já se tornou clássico, ou melhor, best seller, o dilema machadiano de fim de ano: “Mudou o Natal ou mudei eu?” Perde-se o chiste, a espirituosa dubiedade, mas para mim, ambos mudaram. Ressalte-se o óbvio: as coisas externas mudaram demais. Do Natal dos carrinhos de madeira e da boneca de pano, acumulou-se nos nossos dias uma parafernália de bugigangas, uma ourivesaria de minudências, de quinquilharias, um de-tudo-um-pouco, ou um-de-nada-um-pouco. À maneira dos profetas cristãos, pela boca deles, pode-se dizer que a civilização transformou-se num bazar, numa praça de camelôs. Eletrodomésticos enciclopédicos, que só faltam falar, telefones transformando-se em celulares, estes se transformando em computadores e, quiçá, no futuro, quem sabe, em microondas, automóveis em residências e residências em fortalezas, em show-room de segurança. Tudo isso bela e capciosamente anunciado num pregão gigantesco e com a astúcia de fariseus. E nem há um cristo para expulsar esses vendilhões. Nestes colchetes de século e de milênio nada soçobrou. Cristo, neste Natal do século XXI não está na manjedoura, galgou de vez a eternidade no crucifixo.

Mas mudei eu também, e como mudei. Dessas mudanças, uma se percebe; basta uma olhadela distraída no espelho. Uma demão suave de suvinil branca nos cabelos; e não é sabedoria, não - quem me dera caminhasse pela estrada da sabedoria. Malgrado o esforço inútil e contrário, nada de sapiência. Da sapiência e juventude, devíamos ao primeiro vagido abrir mão e singrar os natais sem nenhuma esperança.

Outra mudança: não preciso – e Deus bem o sabe – do ouro do mundo, saciaram-me uns trocados (para o bolso da dignidade). No entanto, já estou pedindo menos – e Deus sabe o quanto sou ambicioso. Neste Natal quero uma camiseta com aquele furinho elaborado pela traça do uso, chinelo caseiro (que não escorrega), um fogão de lenha para espalhar fumaça, uma rede para balançar o cansaço, o meio do rio, um pé de limão galego, uma goteira na madrugada quando os fantasmas se calam – embora tudo isso, eu sei, seja bem imerecido. Que me atirem a primeira pedra – ou fiquem com o resto – diria aos que me dissessem que vendi o mundo por um vintém.

Esperando a professora


Na manhã, os órfãos:

- “Deus criou a Alma”.


Um coro mulato,

de café com leite

e de dentes nata,

decora o milagre:

- “Deus criou a Alma”.


(Namoro uma moça

que a mesa deu flores

de uma cesta órfã,

que a mesa deu frutos

de raízes pobres).


- “Deus criou a Alma”.


Chego, também órfão,

porta-voz de outro

milagre, brinco:

-“E também a ANA”.


Os meninos se entreolham,

acham graça dessa farsa

e dão risadas do Amor...